E lá no fundo, o que é que tem?

humusidades

Era uma vez o Fundão, cidade da Beira Baixa portuguesa marcado pela história longa da mineração, a pele castigada pela recorrência dos incêndios florestais, a monocultura da cereja e o atravessamento de nômades digitais e migrações sazonais ligadas à exploração agrícola. Nessa região, um grupo de artistas e pesquisadoras iniciaram um trabalho de pesquisa que foi dando forma ao projeto Terra Batida em 2023, um conjunto de experimentações artísticas em diálogo expandido com os encontros na região. 

 

Era uma vez um Fundão, desta vez uma ilha feita pelos brancos, na ilha formada a partir do aterramento de um arquipélago, em um canto da Baía de Guanabara, na cidade brasileira do Rio de Janeiro. Zona de manguezais em que abundavam depósitos de materiais orgânicos e calcários, tais como moluscos e ossos enterrados, empilhados pelas populações indígenas que ali habitavam antes da fundação da cidade pelos portugueses. Nesta terra de sambaquis soterrados, foi instalado o campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Eis o local de investigação de artistas e pesquisadoras reunidas em torno do projeto de pesquisa e criação promovido por Terra Batida em parceria com o programa de estudos em humusidades, em 2023. Da vontade de pesquisar junto, surge uma questão-mote para o grupo de cerca de trinta pessoas reunidas em encontros online, entre maio e outubro daquele ano: e lá no fundo, o que é que tem? ​

 

Indagar sobre o fundo das coisas, o fundão, a partir destes dois Fundões territórios feridos pelo extrativismo, pela mineração, pela colonização, pela urbanização, pela apressada intrusão desenvolvimentista, eis o mote para este conjunto de investigações criativas que aqui se apresenta. Observando as marcas da violenta ocupação que incide nesses territórios, as pesquisas de cada uma de nós foram se constituindo em contaminação e fermentação, trazendo a tona muitos outros fundões: dentre eles, o parque estadual Sítio Fundão, na cidade do Crato, região sul do Estado do Ceará, no Nordeste brasileiro, um parque urbano cortado pelo rio Batateiras, e recentemente reconhecido como unidade de conservação. Este Fundão compõe o Geossítio Batateiras, em uma área que já abrigou uma usina hidrelétrica, infraestrutura dominante na produção de eletricidade no Brasil, e, anteriormente, também, um engenho de cana de açúcar, uma das marcas da ocupação colonial portuguesa no Brasil. 

 

Entretanto, muitos outros fundões se revelaram enquanto contávamos umas para as outras sobre as nossas visitas a esses primeiros Fundões: vasculhamos fundos de gaveta; mergulhamos no fundo do oceano Atlântico, de onde avistamos seres que emergem, também, do fundo de poços; nos deparamos com muitos seres que habitam as beiras desses fundões, tais como as cracas e o lixo industrial, animado pelo encontro com outros materiais, ditos orgânicos; seres calcários viscosos que crescem a partir do gotejamento insistente que liquidifica o concreto em cantos umedecidos do edifício da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Ilha do Fundão; as Dunas de Areia, denominação comercial de um sítio de mineração que se transforma em espaço de festas e realização de ensaios fotográficos, em que noivas, debutantes e gestantes posam em meio a um estranho cenário extrativista, na região de Samambaia, em Brasília, capital-federal brasileira. 

 

Nosso trabalho em meio a esses tantos fundões: notar, atentar, curar, no sentido mesmo de ter atenção ou cuidado com algo, algum lugar. Nossos encontros: contar, ouvir, mostrar, deixar fermentar as estórias, e nos contaminar pelos movimentos de pesquisa e criação de cada uma de nós. Aquilo que apresentamos aqui: os frutos de nossos exercícios para imaginar, e aprender a contar as estórias da vida que insiste em meio às ruínas do capitalismo, como nos lembra Anna Tsing. Mergulhar no Capitaloceno caracterizado por Donna Haraway, para, então, imaginar outras estórias ainda possíveis, que contam das vidas emaranhadas que ressurgem nas beiras, nos fundos, nas margens indomáveis, ali onde parecia haver, apenas, deterioração. Nosso compromisso: fundar outros modos de encontro entre Brasil e Portugal em que as feridas da catástrofe ancestral, figurada por Elizabeth Povinelli, não sejam apagadas, mas, muito pelo contrário, se tornem as vias de acesso para uma ação imaginativa que busque tocar a pele da História a contra-pelo, para do arrepio, quem sabe, fomentar fricções regenerativas. 


(Zoy Anastassakis)

 

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"Entrar no Sítio Fundão, localizado no município do Crato, Ceará, é como adentrar às camadas mais profundas da Terra". (Mariana Smith)

 

"Numa terra próxima do Fundão, a população rogava a Martir São Sebastião, um ser pagão. Um dia dentro dessas preces, foi comunicado às gentes daquelas terras que aquelas montanhas escondias riquezas escuras valiosíssimas…"  (Rafaela Aleixo)

 

"Antes de tudo, imaginou-se a geografia da Ilha do Fundão em período anterior a 1500, antes que as naus circunavegantes passassem por ali." (Orlando Vieira Francisco)

 

Terra Batida é uma plataforma mutante que se alinha com o desejo de ativar um trabalho expandido sobre ecologia, no qual se cruzam debates políticos, raciais, laborais, coloniais e de género. Iniciada em 2020, momento em que o colapso ambiental e o contexto pandémico se confundiam, e ao mesmo tempo, evidenciaram sinais da infiltração perversa da monocultura humana sobre os metabolismos do planeta, Terra Batida foi-se tornando um espaço possível para a ação artística em rede, a partir de Portugal, sem hierarquizar disciplinas artísticas e científicas, pesquisa, criação e programação. Ao longo de quatro edições, a sua atividade tem passado sobretudo pelas organização de programas de residência artísticas em diferentes territórios urbanos e rurais, pondo a atenção sobre as suas histórias passadas ou presentes de violência socioambiental, e nutrindo a possibilidade de pesquisas e criações partilhadas publicamente através de conversas, performances, experiências, textos ou caminhadas.

 

Em 2023, na sua 5ª edição, Terra Batida propôs-se realizar uma pesquisa coletiva no município do Fundão, Beira Baixa, região centro de Portugal. A partir de encontros com atores e colectivos locais da região, foi germinando uma atenção particular sobre a noção de “corpo sensor”. Afinal, corpos podem ser sensores de paisagens, propagadores de mensagens, inaladores de fumos, incubadores de vírus, ou arguentes de um processo de reparação. E nem todas as marcas desse diálogo continuado entre corpos e paisagens podem ser percebidas com a mesma linguagem – estimulam-nos a imaginar outras línguas e outras formas de pressentir a realidade.

 

Durante esta residência artística, o grupo teve a oportunidade de visitar as escombreiras das Minas da Panasqueira que carregam a história do tungsténio e da Segunda Guerra Mundial, e chega até hoje manchada por morte e contaminação. Abordou-se a luta contra a exploração de lítio na Serra de Argemela e em Gonçalo. Debateu-se a história da monocultura de pinheiro e da invenção nacional da cereja da Serra da Gardunha. E ainda houve a oportunidade de conhecer práticas de regeneração e cuidado que atuam no território como medicinas sensíveis. 

 

A partir daí, três projetos foram apoiados e construídos como caixas de ressonância desse contexto. O primeiro, Aeromancia de Alina Ruiz Folini, dançado com Emily Silva e Bibi Dória, busca hackear os fluxos respiratórios que inalam a violência heteronormativa. O segundo, Conspirações, de Teresa Castro, tateia o formato da conferência-performance, agregando – mas também alucinando – as narrativas ambientais da Beira Baixa que fomos recolhendo na residência. E por fim, o terceiro,  E lá no fundo o que é que tem?, laboratório geográfico especulativo amplo, resulta de uma parceria com o humusidades e do desejo de co-experimentar pedagogias e alianças.

 

É sobre E lá no fundo o que tem? que gostaria de falar um pouco mais neste pequeno texto. Entre maio e setembro de 2023, humusidades propôs reunir um grupo de estudos e práticas online, com mais de 30 participantes entre Brasil e Portugal, com o desafio de imaginar e estudar os paralelos ambientais, sociais e políticos entre dois (ou mais) territórios com o mesmo nome, Fundão. Um “fundão”, etimologia que nos remete tanto para propriedade fundiária como para um lugar ao fundo, menos evidente ou afirmativo, é também um espaço para ampliar as possibilidades de uma relacionalidade regeneradora, numa contexto histórico entre Portugal e o Brasil marcado pela invasão, escravização e imposição de normas extrativas a contextos humanos  e não-humanos do Brasil. A pergunta: o que tem o Fundão da Beira Baixa em Portugal a ver com a ilha do Fundão na Baía da Guanabara? teria desde o início destes encontros online uma resposta de muitos séculos, uma resposta para o agora de cada um dos territórios emaranhados em estórias de violência ecológica e uma resposta possível  sobre suas correspondências e continuidades, entre Fundões no Rio de Janeiro, Brasília, Espírito Santo e Beira Baixa.

 

O resultado desses encontros expressa-se não só pelo conjunto precioso de experimentos que podemos ver aqui neste site, mas também por toda uma força centrípeta e irradiante de associações e possibilidades que não cabem no espaço da palavra “resultado” ou mesmo no espaço de um site. Corpos-sensores do território, antenas da multiplicação dos tempos ou lampejos de influências, as propostas que aqui se apresentam aumentam o número de Fundões e complexificam a habitabilidade do presente, tecida pela globalização de processos extrativistas e da ocupação forçada, e pela rarefação de espaços de refúgio e diversidade humana e ambiental. 

 

(Rita Natálio)

Conhece em detalhes todos os projetos criados no âmbito do grupo de pesquisas em https://www.humusidades.com/fundao.

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