Cartas do Fogo
Ritó Natálio & Ellen Pirá Wassu
No contexto da nova criação Cartas do Fogo, Ritó Natálio & Ellen Pirá Wassu compuseram um pequeno livreto que reúne as cartas trocadas entre ambos – matéria-prima da performance apresentada no Alkantara Festival 2024 – e uma série de notas de investigação e excertos de leituras desenvolvidas em paralelo às visitas em acervos museológicos em Lisboa e Coimbra.
A brochura pode ser consultada e baixada AQUI.
Texto e leitura performativa: Ellen Pirá Wassu & Ritó Natálio
Som: João Pratas
Design de publicação: Isabel Lucena
Colaboração no processo de pesquisa: António Gouveia, Idjahure Terena, Francy Baniwa, Francisco Baniwa, Julia Sá Earp, Zoy Anastassakis, Susana de Matos Viegas
Colaboração na publicação: Laila Algaves Nuñez
Pesquisa realizada nos espaços: Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUHNAC), Museu Nacional de Etnologia, Torre do Tombo, Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, Academia das Ciências de Lisboa
Curadoria: Terra Batida 2024
Produção: Terra Batida/Associação Parasita (Laila Algaves Nuñez, Lysandra Domingues, Sofia Lopes)
Coprodução: Alkantara
A PARASITA é uma estrutura financiada pela República Portuguesa – Ministério da Cultura/Direção-Geral das Artes entre 2023-2024.
Isso poderia ser um poema, mas derrubaram uma árvore.
Em 22 de abril de 1500, derrubaram a primeira árvore.
D. Manuel, achando-se proprietário de árvores,
mandou despachar pelo menos seis navios por ano para extração de pau brasil
e o que mais pudessem explorar.
Isso poderia ser um poema, mas derrubaram muitas árvores
No começo, pelo menos 1200 toneladas por ano
Os franceses também gostavam de derrubar árvores
Em 1588, pelo menos 4.700 toneladas de árvores foram derrubadas
Os holandeses também derrubaram árvores
os espanhóis também derrubaram árvores
os ingleses também derrubaram árvores.
Isso poderia ser um poema, mas o assalto e o contrabando europeu podem juntos
ter extraído 12.000 toneladas de árvores por ano.
Viva a união europeia.
Isso poderia ser um poema, mas derrubaram muitas árvores
Calcula-se que todas essas toneladas
foram conseguidas nos primeiros anos
pelo sequestro e assassinato
de aproximadamente 2 milhões de árvores
e pelo assalto de 6 mil quilômetros de mata atlântica
(apenas durante o primeiro século do tráfico),
valor a ser corrigido para mais,
pelos estragos e naufrágios.
Isso poderia ser um poema,
mas as palavras das árvores se intimidam a tantos números.
Isso poderia ser um poema, mas além de seguirem derrubando árvores,
prenderam e escravizaram pessoas e animais.
Além das árvores, constam nos registros de carga de navios como o Bretoa em 1511:
23 periquitos, 16 felinos, 19 macacos e 15 quinze papagaios
No registro de 1532, do navio Pelerine, consta
3000 peles de "leopardos", 300 macacos e 600 papagaios.
Isso poderia ser um poema, mas me dei conta
de que os espíritos das onças sabem se vingar
melhor do que os espíritos das árvores.
Eu acho que as árvores não se vingam.
Nós nos condenamos a perder a presença desses espíritos.
Talvez isso seja o mais próximo de uma vingança que uma árvore pode fazer:
atestar a estupidez humana.
Isso poderia ser um poema, mas além de seguirem derrubando árvores,
ateando indiscriminadamente fogo à mata atlântica,
um outro perigo/produto colonial se apresenta: a cana de açúcar.
Produzir açúcar também consumiu a floresta.
Precisavam de lenha para cristalizar o caldo da cana.
Para cada quilo de açúcar
15 quilos de lenha eram queimados.
Isso poderia ter um poema, mas eu tenho mais números:
uma média de 210.000 toneladas de matas queimadas para esse fim.
Negros e indígenas capturados, negociados e escravizados
pelos próximos 300 anos no modelo de exploração português.
Ninguém levou em conta que a terra também cansa.
Isso poderia ser um poema, mas a terra está cansada,
A terra está cansada desde 1501.
Isso poderia ser um poema, mas os aldeamentos
transformaram dignos cidadãos da floresta
em mão de obra despertencida e empobrecida.
Isso poderia ser um poema, mas as guerras biológicas,
as doenças trazidas nas caravelas
foram as maiores armas do imperialismo para dizimar
gentes insubordináveis.
Isso poderia ser um poema, mas introduziram o gado,
mais gentes foram escravizadas.
Isso poderia ser um poema, mas ele se intimida aos números.
É preciso de toneladas de retomada para que isso seja um poema.
Depois de mais de 3 séculos de exploração,
A última remessa de "pau-brasil" para a Europa data de 1875.
E aqui começa um novo poema para a mata.