As zonas húmidas enquanto organismos filtrantes

Margarida Mendes

O amanhecer junto à orla costeira da Ria Formosa anuncia-se quase sempre radiante. Nesta manhã, deparo-me por acaso com o ritmo de mudança de marés, as águas cruzam-se num duplo movimento que urge em direções opostas, escorrendo entrelaçadas num movimento lânguido ao longo das margens. A água reverbera a pulsão lunar num movimento milenarmente geosíncrone, inscrevendo padrões no seu curso. Na preponderância sábia de uma geometria ancestral, reencontro o hiato onde a moção interna da fluidez dos corpos se sincroniza com o devir cosmológico da matéria no tempo entre marés. Nesta manhã radial, o sistema lagunar da ria resplandece no seu fulgor reprodutivo, abraçado por cristas dunares, que a protegem do tumulto das águas subintes. A placidez das suas bacias é viveiro e fonte de alimentação para muitas espécies marinhas em fase larval ou juvenil, oferecendo um espaço de nidificação para espécies cujos habitats estão sobre pressão. Hoje, como em tantos outros dias, a ria é visitada por uma série de marsicadores que perscrutam o seu fundo com dragas, à espera de recolher os muito desejados frutos do mar – amêijoas, conquilhas, lingueirão e outros bivalves locais, que seduzem os visitantes das vilas em redor. Grande parte da economia local é gerada pela biosfera da ria, que encanta veraneantes forasteiros, em busca de praias desertas e turismo de natureza, ao mesmo tempo que sustém as comunidades piscatórias da região ao longo do ano.

O Parque Natural da Ria Formosa estende-se por uma área com cerca de 18400 hectares, ao longo de 60km da costa do Sotavento algarvio, entre as penínsulas do Ancão e Manta Rota. Esta área protegida integrada na Rede Natura 2000, é um ecossistema único e verdadeiramente regenerador, acolhendo várias espécies ameaçadas como o caimão Porphyrio porphyrio, a andorinha-do-mar-anã Stermula albifrons, ou o camaleão Chamaeleo chamaeleon. Muitas destas espécies apenas se distribuem pelas zonas húmidas do Sotavento algarvio. O habitat da ria é casa para diversas aves migratórias e invernantes que circulam entre África e a Europa do Norte, e que aqui encontram condições propícias para se resguardarem durante os meses de frio.

O ecossistema lagunar está protegido do mar, que a ladeia por todas as frontes, sendo apenas entrecortado por uma série de ilhas e cordilheiras de dunas que a abraçam, bem como por sistemas de canais e barras, que permitem a circulação da água. A preponderância do fluxo da maré, que se faz sentir em toda a área, e a fina altura da coluna de água, fazem com que a qualidade nutritiva das suas águas seja muito alta e continuamente regenerada, não apenas devido ao fluxo constante de nutrientes, mas também pela capacidade fotossintética da vegetação marinha. O sapal lodoso no qual a ria corre, é indubitavelmente uma das paisagens naturais que merece mais atenção, e cujo importante papel na resiliência da equação climática tem sido pouco reportado.

A imprescindível função dos sapais é hoje mais relevante que nunca, sendo que o seu território lamacento tem propriedades únicas no sequestro de carbono e na filtragem de matéria. A qualidade química destes locais deve-se a uma ampla acumulação de nutrientes, através da rede de sedimentos acumulados pela constância da maré, e pelos seres que nele habitam ou se decompõem. A importância metabólica das zonas húmidas é imensa, pois o seu habitat é regulador de níveis de toxicidade das águas, absorvendo e fixando metais pesados nas suas lamas, bem como filtrando outros nutrientes através da atividade de microorganismos residentes.

Os sapais estendem-se por zonas costeiras em várias partes do mundo, e fazem parte de uma importante rede de zonas húmidas aos quais pertencem também pântanos, lagos, lamaçais, manguezais, recifes de coral, ou turfeiras. Estes estão albergados pela Convenção de RAMSAR sobre as Zonas Húmidas de Importância Internacional Especialmente Enquanto Habitat de Aves Aquáticas, um tratado internacional para a conservação e uso sustentável de zonas húmidas assinado no Irão em 1971. Este tratado, que agora abrange 168 países, visa a conservação e utilização sustentável de zonas húmidas de importância internacional, dadas as suas importantes funções ecológicas, bem como o seu valor em termos económicos, culturais, científicos e recreativos. Em 2007 a convenção de RAMSAR mapeou 1.280 milhões de hectares de zonas húmidas no planeta, correspondendo a 9% da superfície terrestre, o que se pensa ser uma subestimativa. Num momento de crise ecológica e subida de temperaturas, a proteção das zonas húmidas poderá ter um papel determinante na compensação de emissões excessivas de gases de estufa. Estima-se que estas zonas húmidas sejam responsáveis por sequestrar cerca de 35% do carbono terrestre global, tendo o potencial de capturar e armazenar mais de 200 toneladas métricas de “carbono azul” por ano.

Como se dá este processo? O alagamento de solos pantanosos limita a difusão de oxigénio nos sedimentos, criando condições anaeróbicas que reduzem a taxa de decomposição, e que levam ao armazenamento de grandes quantidades de carbono orgânico nos sedimentos das áreas húmidas. Este processo faz com que o sequestro de carbono decorra a uma velocidade cerca de 30-50% mais rápida que as florestas, sendo que estes ecossistemas armazenam 50-90% desse carbono nos solos, onde pode permanecer por milhares de anos se não forem perturbados. No entanto, quando os pântanos costeiros são drenados ou degradados, o carbono armazenado pode reoxidar-se, acelerando o seu processo de libertação para a atmosfera, o que corresponde por vezes à emissão de séculos de carbono armazenado em apenas algumas décadas. De momento, estima-se que 65% das zonas húmidas do planeta estarão degradadas e danificadas, o que faz com que a nossa atenção para projectos de conservação e recuperação das zonas húmidas seja cada vez mais premente.

No estuário do rio Tejo podemos encontrar um outro sapal cujo futuro se encontra ameaçado. Neste está localizada a Reserva Natural do Estuário do Tejo, que cobre 14.500 hectares de área circundante ao maior sapal do país, com cerca de 34.000 hectares de extensão. Este sapal, sendo o mais amplo da Europa Ocidental, alberga cem mil aves invernantes, entre elas flamingos, patos e aves limícolas que se deslocam entre o Ártico e África, e que fazem parte da larga comunidade de duzentas mil aves que ali habitam. Além de aves, a reserva é casa para espécies aquáticas que migram para desovar e utilizam o seu espaço como viveiro, como por exemplo a lampreia-do-mar Petromyzon marinus, o sável Alosa alosa, ou a enguia Anguilla anguilla. O valor ecológico deste ecossistema deve-se também à riqueza da zona entre marés, cuja diversidade de microalgas e matéria vegetal, providencia os nutrientes necessários ao acolhimento de uma série de espécies invertebradas, que são a base da cadeia trófica estuarina.

A Reserva Natural, fundada em 1976, estende-se ao longo dos concelhos de Alcochete, Benavente e Vila Franca de Xira, e está agora em perigo, tendo em conta o plano de construção do aeroporto civil do Montijo. O aeroporto, que irá resultar da construção de infraestrutura de suporte para a já existente pista aérea de uma base militar, aumentará a capacidade de acolhimento de turismo na cidade de Lisboa para 50 milhões de passageiros por ano, além da ampliação do aeroporto da Portela, já em curso. Planeado numa área de risco sísmico e de impacto imediato pela subida das águas, o aeroporto do Montijo parece agora um controverso investimento, dadas as metas de descarbonização impostas pelo Acordo de Paris. Para além da sua construção contrariar a mitigação de efeitos do acréscimo dos gases de estufa poderá provocar o risco de colisão entre aeronaves e aves de grande porte que habitam o estuário. Igualmente, o projecto de um novo aeroporto para a cidade de Lisboa trará necessariamente um aumento considerável aos níveis de poluição sonora, cujo impacto nos habitantes e espécies locais está pouco estudado. A sua construção vem sendo debatida pela comunidade científica, colectivos de activistas e núcleos protectores de aves. No entanto, apesar da controvérsia, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) sugere, nas suas avaliações de risco ambiental, que o projecto poderá seguir em frente, propondo escassas medidas de mitigação de efeitos.

Qual será o futuro das paisagens húmidas quando as espécies que delas usufruem não reconhecem as fronteiras administrativas sugeridas pela área protegida? E como será garantido o balanço de filtragem de toxinas neste ecossistema, quando os níveis de carbono na atmosfera aumentarem significativamente, e as espécies que nele habitam começarem a escolher outros espaços para reprodução e acolhimento?

Idealizamos o rio como algo que corre eternamente, dando a sua presença purificadora como garantida. No entanto, alterações cumulativas no seu ecossistema e nas pradarias aquáticas que o envolvem podem trazer transtornos irrecuperáveis. Os planos de desenvolvimento locais deverão ser desenhados em sincronismo com a proteção das zonas húmidas. Várias comunidades humanas dependem da generosidade reprodutora deste sapal para a sua subsistência. Em 2015 foram contabilizados 1.700 apanhadores de amêijoas, entre eles trabalhadores migrantes da Roménia, Vietnam e Portugal, que afirmam colher por dia 20 a 30 toneladas de marisco. Este negócio, que num ano facilmente atinge os 30 milhões de euros, começa a ser fortemente fiscalizado dada a potencial toxicidade das águas e acumulação de metais pesados nos organismos em causa. Em 2018, foram comunicados avisos sobre a potencial toxicidade e baixa qualidade das águas do rio, cujo fluxo é controlado por catorze barragens espanholas e duas portuguesas, que gerem o seu caudal. Neste ano, a escassez de partículas de oxigénio medidas, bem como o excesso de matéria orgânica, conduziram ao florescimento invulgar de algas em quantidade, o que muda o balanço de filtragem, além de estimular estados de hipóxia preocupantes.

A questão da distribuição de toxicidade torna-se hoje mais central que nunca e deverá ser adereçada por múltiplas frontes. Pensemos por exemplo no caso alarmante da Celtejo, fábrica de processamento de celulose, aliada a grande parte da monocultura de eucalipto, e que tem sido sucessivamente autorizada pela APA e o Ministério do Ambiente a liberar suas espumas tóxicas no curso do rio. Poderá a responsabilidade cívica desta companhia, e o próprio Estado não ser posto em causa, sendo que as suas ações afectam profundamente recursos comuns e o bem estar das comunidades? Ou, por exemplo, no facto das águas do Tejo serem utilizadas para arrefecimento de centrais nucleares espanholas, como Trillo ou Almaraz, cuja instabilidade se anuncia em duas clausuras recentes por falhas nos protocolos de segurança. Será a falta de um plano ibérico de produção de energia e irrigação um risco que queremos tomar? Todas estas incursões põem em risco a fragilidade do estuário e o futuro do sapal circundante.

As zonas húmidas, enquanto organismos filtrantes, são preciosas e deverão ser reconhecidas enquanto tal. O seu frágil balanço ecossistémico deverá ser lido como uma mais-valia para o plano global de mitigação da crise climática. Num momento em que necessitamos de deliberar a nossa capacidade de decrescimento, e ponderar mais acutilantes estratégias de conservação, mais do que nunca é necessário dar atenção aos processos metabólicos e sociais que formam um dado ecossistema. Esta leitura do ambiente deverá ser feita de forma interescalar, reconhecendo diferentes processos de intercâmbio químico e social, analisando o cruzamento das suas múltiplas temporalidades. Observar a potencialidade regeneradora dos sistemas lagunais e zonas húmidas, expostas ao ritmo cíclico das marés, à adaptação ao clima, e ao comportamento das espécies que as habitam, ensina-nos isto mesmo. De que é possível um refinamento de sincronismos entre espécies e a flutuação de padrões hídricos, e que estes processos agem como catalistas para um ecossistema mais resiliente.

Neste espaço transtemporal que é o hiato entre marés, gera-se a o potencial metabólico para os elementos do habitat sequestrarem carbono excessivo, permitindo à ampliação do nosso futuro. No entanto, as zonas húmidas, muitas delas costeiras e perto de portos em expansão – como o de Aveiro ou Setúbal – estão cada vez mais ameaçadas por atividades industriais, o aumento de circulação, ou dragagens. Todas estas atividades destabilizam os frágeis desiquilíbrios dos ecossistemas estuarinos ou lagunais. Esta desatenção planeada, deve-se a causas mais profundas, além da falta de literacia sobre estes ecossistemas e da crescente pressão das narrativas de progresso. Há ainda questões ontológicas relacionadas com o foro da visão antropocêntrica de mundo. Pois enquanto, não recuperarmos o espaço não dual onde se deixa de distinguir o humano da natureza, e a capacidade de entender a promessa restauradora destes ritmos metabólicos continua adiada. Apenas quando conseguirmos abandonar a nossa supremacia e sincronizar com o fluxo interescalar dos múltiplos organismos que coabitam connosco em contínuo, poderemos honrar a oportunidade resiliente que a transtemporalidade das águas nos traz.

NOTAS
BIBLIOGRAFIA

Margarida Mendes é curadora, investigadora e ativista. Vive em Lisboa. A sua pesquisa - com enfoque no cruzamento da cibernética, filosofia, ecologia e filme experimental - explora as transformações dinâmicas do ambiente e o seu impacto nas estruturas sociais e no campo da produção cultural. Integrou na equipa curatorial da 11a Bienal de Gwangju (2016) e da 4a Bienal de Design de Istambul (2018). Em 2016, curou a exposição MATTER FICTIONS, no Museu Berardo, publicando um livro em conjunto com a Sternberg Press. É consultora de ONGs ambientais que trabalham em política marinha e mineração no mar profundo e dirigiu também diversas plataformas educacionais, como escuelita, uma escola informal do Centro de Arte Dos de Mayo - CA2M, Madrid (2017); O espaço de projetos The Barber Shop em Lisboa dedicado à pesquisa transdisciplinar (2009-16); e a plataforma de pesquisa curatorial sobre ecologia The World In Which We Occur (2014-18). Margarida Mendes é doutoranda no Centre for Research Architecture, Visual Cultures Department, Goldsmiths University of London com o projecto “Deep Sea Imaginings” e colabora frequentemente com o canal online de vídeo reportagem Inhabitants.

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