Solos em guerra
João Prates Ruivo
FERTILIDADE COMO ARMA
A 4 de Agosto de 2020 uma enorme explosão destruiu o porto e grande parte da baixa de Beirute, no Líbano. Quando o pó assentou, uma cratera de 140 metros surgiu no epicentro da explosão. O vazio criado no cais de betão e preenchido pela água do mar era a prova que restava da magnitude do acontecimento, que foi descrito como uma das maiores explosões não-nucleares alguma vez registada. Dúvidas sobre a origem da explosão começaram a circular nos media, assim que se soube que dentro dos armazéns do porto estavam armazenadas mais de 2.700 toneladas de nitrato de amónio. Teria sido esta uma detonação intencional?
Foram feitas comparações com anteriores explosões urbanas não acidentais, como a do atentado de Oklahoma em 1995, em que duas toneladas de nitrato de amónio foram o suficiente para demolir parcialmente um edifício de betão de nove andares do governo federal. Mas para além de se tratar de um composto explosivo, NH4NO3 é também um elemento químico essencial na produção industrial de fertilizantes para a agricultura. É utilizado praticamente por todas as empresas da indústria agrícola, como a Breivik Geofarm na Noruega, uma empresa agrícola fictícia criada em 2009 com o único objectivo de adquirir grandes quantidades de fertilizantes químicos que foram posteriormente utilizados no atentado de 2011 no centro de Oslo. Rachel Revesz, ‘Norwegian Terrorist Anders Breivik Changes His Name to Fjotolf Hansen’, The Independent, 11 June 2017, https://www.independent.co.uk/news/world/europe/anders-breivik-norway-terrorist-mass-murderer-changes-name-fjotolf-hansen-a7784186.html.
O que estas primeiras conclusões, retiradas no rescaldo da explosão em Beirute, revelaram não foi que o fertilizante de nitrogénio armazenado no porto tinha sido utilizado de forma intencional enquanto arma, mas que, desde a sua criação, o nitrogénio sintético é uma questão tanto agrícola como militar.
VIDA SINTÉTICA
Que um elemento chamado de azote (termo francês que define “o que não favorece a vida”) em 1787 pudesse tornar-se fundamental no esforço para alimentar a população crescente de Inglaterra, obcecada pelo medo da fome e assombrada pelo Malthusianismo, é uma segunda surpresa. Esta viragem nos acontecimentos resultou da análise feita por Martin Heinrich Klaproth e Nicholas Vauquelin das amostras de guano trazidas do Perú por Alexander von Humboldt, bem como de posteriores análises sistemáticas. As plantas não viviam exclusivamente do oxigénio e da luz, como se pensava desde Joseph Priestley, mas também de nitrogénio, fósforo, cálcio e potássio. A descoberta de que esses minerais desempenhavam um papel importantíssimo no crescimento de seres vivos desafiou a antiga divisão da vida em reinos e a crença há muito estabelecida numa força vital. Bernadette Bensaude-Vincent and Isabelle Stengers, A History of Chemistry (Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1996). p.172
Embora a origem do impacto do nitrogénio na agricultura possa ser atribuída às propriedades fertilizantes do guano, foi apenas durante a segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento da nova ciência da química agrícola por Justus von Liebig, que a teoria predominante da matéria orgânica como fonte primária para o crescimento vegetal viria a ser questionada. Considerado o “pai” da química moderna, um título tecno-patriarcal adequado, o trabalho de Liebig ganhou força geopolítica nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, enquanto a procura por alternativas ao fornecimento de guano era considerada crucial para a independência agrícola nacional, e o nitrogénio como elemento estava também a ser adquirido para propósitos militares como um dos componentes-chave para a produção de explosivos.Bensaude-Vincent and Stengers.
TERROR QUÍMICO
Esta relação próxima entre a guerra moderna e a agricultura foi criada durante a Primeira Guerra Mundial, conflito que permitiu o desenvolvimento e a prosperidade das indústrias química e mecânica. Os recursos industriais da agricultura foram redireccionados para fins militares. Fertilizantes, ferramentas e tractores, cujas funções agrícolas foram adaptadas para se tornarem munições, armas e novos tipos de máquinas de guerra, regressaram com capacidades todo-o-terreno melhoradas depois da guerra. Em 1915, o protótipo de um veículo chamado “Little Willie”, produzido pela empresa de maquinaria agrícola Wm Foster & Co., estava ser testado em Lincoln, Inglaterra. Trata-se sobretudo do corpo adaptado de um tractor agrícola com uma armadura e rodas de artilharia equipadas com amortecedores para ser usado em terrenos irregulares e lamacentos. Começou a produção industrial de um segundo protótipo chamado “Big Willie”, um veículo militar blindado que ficou conhecido como Mark I e que foi testado em acção em 1916: foi o primeiro tanque utlizado na guerra. Peter Dewey, ‘Iron Harvests of the Field’: The Making of Farm Machinery in Britain since 1800 (Lancaaster: Carnegie publishing, 2008). p.160.
Foi também durante a Primeira Guerra Mundial, se seguirmos a premissa de Peter Sloterdijk, que o ambiente foi introduzido como um elemento na batalha entre adversários: naquilo que viria a ser conhecida como a primeira utilização em grande escala de um componente químico enquanto agente de guerra, a 22 de Abril de 1915 um “regimento de gás” do exército da Alemanha Ocidental lançou garrafas de gás cloro na frente de batalha, libertando mais de 150 toneladas de gás cloro na atmosfera que foi levado na direcção do inimigo ao tirar partido da acção dos ventos dominantes Peter Sloterdijk, Foams: Plural Spherology, trans. Wieland Hoban, Semiotext(e) Foreign Agents Series 3 (South Pasadena, CA: Semiotext(e), 2016). p.86. Este episódio, defende Sloterdijk, assinalou a transição da “guerra tradicional” para o “terrorismo”, mais especificamente aquilo que designa por um “conceito de terror pós-hegeliano” que substituiu formas de batalha convencionais pelo ataque directo sobre as pré-condições ambientais para a vida do inimigo Sloterdijk. p.91. Neste novo tipo de guerra, o alvo já não era o corpo do inimigo, mas sim o seu ambiente:
Se o corpo do inimigo não pode mais ser eliminado com golpes directos, é apresentada agora ao atacante a possibilidade de tornar a sua existência continuada impossível ao mergulhá-lo num meio inabitável durante um período suficientemente longo. (…) É esta conclusão que deu luz à “guerra química” moderna — enquanto ataque sobre as funções vitais do inimigo dependentes do ambiente, nomeadamente a respiração, regulação do sistema nervoso central e temperatura e condições de radiação suportáveis. É, de facto, neste ponto que a guerra tradicional se torna em terrorismo.Sloterdijk. p.91
REPRODUÇÃO DOS MEIOS DE CONSUMO
A intrincada história agrícola e militar do nitrogénio viria a sofrer uma segunda aceleração depois do fim da Segunda Guerra Mundial, quando as Nações Unidas fundaram a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) para tratar da perturbação causada pelo conflito global na produção agrícola. Naquilo que foi descrito como uma “conversão pacífica” dos meios de produção afectos à guerra, a FAO defendia o regresso da infraestrutura industrial desviada durante o esforço de guerra, que incluía maquinaria agrícola e fábricas químicas que costumavam produzir fertilizantes e pesticidas. Ralph W. Phillips, ‘FAO: Its Origins, Formation and Evolution 1945-1981.’, 1981, http://agris.fao.org/agris-search/search.do?recordID=XF19820774912. Isto significou também uma incorporação da semântica da guerra na agricultura. No seu quarto relatório publicado em 1948, que abordava os factores sociais e económicos que determinam a “eficácia técnica” do cultivo, um capítulo intitulado “The Battle for Agricultural Production” descreve a erosão do solo como o inimigo a combater in. FAO, Rome (Italy). Economic and Social Development Dept, ed., The State of Food and Agriculture, 1948: A Survey of World Conditions and Prospects (Washington, DC (USA): FAO, 1948).
Um componente central nesta transição foi a reafectação da capacidade industrial para produzir nitrogénio, que tinha sido alocado à produção de explosivos e estava agora disponível em grandes quantidades para fins agrícolas. O súbito excedente de fertilizante sintético barato não substituiu apenas a necessidade de dependência das colheitas de leguminosas para converter nitrogénio da atmosfera em amoníaco, um componente indicado para o consumo vegetal; provocou também o crescimento exponencial da monocultura, uma vez que estava ligada ao desenvolvimento de novas variedades de sementes que foram concebidas para consumir elevadas doses de fertilização química, em particular a fórmula que incluía Nitrogénio, Potassa e Sódio, na proporção 30-10-30, e que se popularizou como NPK. Ver John Bellamy Foster, Marx’s Ecology: Materialism and Nature (New York: Monthly Review Press, 2000). p.163.
Esta fórmula de fertilizante químico foi um dos pilares daquilo que ficou conhecido como a Revolução Verde, programa criado com o apoio técnico e financeiro do Banco Mundial, do Governo dos EUA e das Fundações Ford e Rockefeller para, alegadamente, promover desenvolvimentos agrícolas baseados na ciência. Desencadeado pelo rescaldo do Dust Bowl da década de 1930 — desastre ecológico que foi na altura associado ao fenómeno da erosão do solo provocada pela má gestão do cultivo intensivo —, foi implementado pela primeira vez na América do Norte Ver Richard. Grove, Ecology, Climate and Empire: Colonialism and Global Environmental History, 1400-1940 (Cambridge: White Horse, 1997). p.87. Segundo Grove, a Dust Bowl teria tido também um profundo impacto sobre as políticas de conservação em África. A este respeito, ver William Beinart, ‘Soil Erosion, Conservationism and Ideas about Development: A Southern African Exploration, 1900-1960’, Journal of Southern African Studies 11, no. 1 (1984): 52–83.; e também David Anderson, Depression, Dust Bowl, Demography, and Drought: The Colonial State and Soil Conservation in East Africa during the 1930s’, African Affairs 83, no. 332 (1984): 321–43.. Mas após uma primeira fase de experiências internas, a Revolução Verde foi depois exportada e testada em “países menos industrializados” que eram vistos como “mercados ilimitados” para o consumo de fertilizantes e sementes industriais, alimentados por combustíveis fósseis.Eric B. Ross, The Malthus Factor : Population, Poverty, and Politics in Capitalist Development (London ; New York: Zed Books ; Distributed in the USA exclusively by St. Martin’s Press, 1998). p.140 O derradeiro objectivo era o transplante do modelo americano [EUA] de agricultura industrial intensiva para outras partes do mundo, como aconteceu no México nas décadas de 1940 e 50, aonde chegou com a supervisão técnica do geneticista James Borlaug. Ross.Ao estabelecer a narrativa neo-Malthusiana segundo a qual “a necessidade de alimento”, devido à sobrepopulação, era o impulso por trás dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos na agricultura, os efeitos nocivos da Revolução Verde aparecem muitas vezes disfarçados de intenções humanitárias e ecológicas. John H. Perkins, Geopolitics and the Green Revolution: Wheat, Genes, and the Cold War (New York ; Oxford: Oxford University Press, 1997). p.v.Em conjunto com a Fundação Rockefeller, foi atribuído a Borlaug o Nobel da Paz em 1970 pelo seu trabalho em variedades híbridas de trigo no México, e quando recebeu o prémio declarou: “Se o trigo e arroz de elevado rendimento são os catalisadores que desencadearam a Revolução Verde, então os fertilizantes químicos são o combustível que permitiu o seu impulso evolutivo.” Borlaug, 1970, cited in Ross, The Malthus Factor. p.191
A ANTI REVOLUÇÃO
A revolução no nome não se refere aos esforços de emancipação anti-colonial que foram contemporâneos à sua implementação. Pelo contrário, os seus defensores afirmam que a “utilização da palavra ‘revolução’ sugeria que uma relação fundamentalmente nova existia entre as pessoas e as suas mais importantes plantas alimentares. ‘Verde’ tinha implícita uma tecnologia benigna e enfatizava o carácter positivo da relação”. Perkins, Geopolitics and the Green Revolution. p.v.
Com efeito, a Revolução Verde não partilhava apenas algumas das tecnologias químicas e militares desenvolvidas para contrainsurgência, o seu próprio funcionamento era uma forma dissimulada de guerra ambiental, porque tomava como alvo o ambiente de guerrilhas da resistência com as suas políticas de desenvolvimento agrícola, visando a transformação irreversível dos seus meios de subsistência. A física e activista Vandana Shiva, que há muito denunciou os prejuízos ambientais, sociais e políticos da Revolução Verde, defendeu que a sua implementação na Índia desde 1965 tinha outros objectivos para além do aumento da produtividade agrícola. Shiva afirma que o projecto era sobretudo uma “estratégia tecno-política para a paz (…) que pretendia desenhar não apenas sementes mas também relações sociais” que instrumentalizavam o desenvolvimento agrícola como um meio para estabilizar politicamente áreas rurais e “reduzir a ameaça da insurgência comunista e o conflito agrário”. Vandana Shiva, The Violence of the Green Revolution: Third World Agriculture, Ecology, and Politics (London ; Atlantic Highlands, N.J., USA : Penang, Malaysia: Zed Books ; Third World Network, 1991). pp.11-16 De um ponto de vista político, a chamada “Revolução Verde” era essencialmente um programa concertado pensado durante a guerra fria pelas potências ocidentais contra uma ameaça “vermelha” internacionalista do comunismo. Stephen Brain, ‘The Appeal of Appearing Green: Soviet-American Ideological Competition and Cold War Environmental Diplomacy’, Cold War History 16, no. 4 (October 2016): 443–62, https://doi.org/10.1080/14682745.2014.971015.
Foi também durante este período que o termo ecocídio apareceu na cena internacional, enquanto acusação contra crimes de guerra cometidos pelo exército norte-americano no Vietname entre 1961 e 1971. O termo cunhado em 1967 por Arthur Gaston, biólogo de Yale, numa carta enviada por um grupo de cientistas ao Presidente Johnson contra o uso de armas químicas na guerra do Vietname, especificamente o uso de agentes desfolhantes como meio para expor as guerrilhas que procuravam refúgio na floresta. Mas o alcance de destruição ambiental provocado por agentes herbicidas foi muito além da desfoliação das plantas, afectou ecossistemas inteiros, conduzindo à acusação de que esse tipo de tática de guerra prefigurava graves crimes de guerra:
“Parece-me que a destruição deliberada e permanente do ambiente no qual as pessoas podem viver da maneira que entenderem deve ser também considerado como um crime contra a humanidade, a ser designado pelo termo ecocídio.” Galston, et al, Scientists petition to President Johnson against Herbicidal Warfare. Bioscience 17 (September-January 1967): 10. Cited in David Zierler, The Invention of Ecocide: Agent Orange, Vietnam, and the Scientists Who Changed the Way We Think about the Environment (Athens ; London: University of Georgia Press, 2011). p.114
Embora o programa de guerra química no Vietname se tenha tornado sinónimo da utilização do tóxico Agente Laranja, outros compostos químicos foram também usados, cada um tendo como alvo uma cultura ou tipo de vegetação específico: Agente Azul, “um assassino de arroz à base de arsénio”, Agente Branco, “composto sobretudo de 2,4-D, que ainda é largamente utilizado para o controlo de ervas daninhas em relvados e na agricultura". Ibid, p.6
FINS
Em 2002, o químico atmosférico Eugene Stoermer e o biólogo Paul Crutzen previram que, como consequência do aumento das práticas de agricultura intensiva, “mais fertilizante de nitrogénio é aplicado na agricultura do que é naturalmente previsto em todos os ecossistemas terrestres”. Paul J. Crutzen, ‘Geology of Mankind’, Nature 415, no. 6867 (January 2002): 23–23, https://doi.org/10.1038/415023a. Cited in McKenzie Wark, Molecular Red: Theory for the Anthropocene (London: Verso, 2015). A transformação química dos solos foi um dos principais indicadores destacados para caracterizar a nova época geológica a que deram o nome de Antropoceno. Embora sinais cada vez mais evidentes da relação entre o cultivo intensivo e a erosão do solo sejam reconhecidos como uma das principais causas para a degradação do solo, ao considerar alternativas, cientistas e organizações como a FAO defendem muitas vezes soluções tecnocientíficas, que seguramente criaram os problemas em primeiro lugar. Mas estas não são novas abordagens: com efeito, são versões de uma política para a gestão global do solo iniciada pela FAO depois do fim da Segunda Guerra Mundial, quando a agência defendia a “gestão plena da saúde vegetal, à semelhança da dos seres humanos”. FAO Food and Agriculture Organization, ‘Program for the 1950 World Census of Agriculture’ (Food and Agriculture Organization of the United nations, 1948).
Como tal, as perturbações metabólicas produzidas por tecnologias de agricultura intensiva não são simplesmente a consequência de lógicas extractivistas capitalistas e neo-liberais, são fundamentalmente a materialização na terra de uma máquina de guerra ambiental que se desenvolveu desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a par do conhecimento científico das propriedades dos solos. Se ao abrigo da lei internacional a guerra química é considerada um acto ilegal ou, como Sloterdijk o colocou, uma forma de terrorismo militar, a agricultura industrial quimicamente intensiva terá de ser reconhecida em breve como uma forma de ecocídio.
Título: Amostras de solo recolhidas em Angola durante a ocupação colonial, 1954-63.
Estas amostras de solo foram recolhidas em Angola durante a ocupação colonial e serviram para definir estratégias tecno-científicas para a beneficiação dos terrenos. Os restos de um projecto de colonização fracassado, estes pedons verticais revelam a natureza das modificações técnicas dos solos, um património invisível que ainda perdura até aos dias de hoje.
Fotografia: Instituto Superior Agronomia, Lisboa, 2016.
por João Prates Ruivo.
Título: Classificação de agentes químicos de acordo com o seu órgão ou tecidos alvo (de Szinicz, 2005)
“Comparados a armas convencionais, quantidades relativamente pequenas de agentes químicos e biológicos modernos podem causar elevados números de baixas. Por isso, os agentes de guerra químicos e biológicos foram classificados como armas de destruição maciça.
Fonte: L. Szinicz, ‘History of Chemical and Biological Warfare Agents’, Toxicology, The Toxicologist and the Response to Incidents with Chemical and Biological Warfare Agents, 214, no. 3 (30 October 2005): 167–81, https://doi.org/10.1016/j.tox.2005.06.011.